quinta-feira, 28 de setembro de 2017

É preciso ter raça de ter fé na vida, Maria!!!

A falta de segurança oferece aos políticos oportunistas um ambiente favorável para invocar o ódio. Com isso, o coronel Antonio Hamilton Mourão, por defender uma intervenção militar num depoimento sobre a atual conjuntura política, econômica e social do Brasil, se transformou no personagem principal de um debate fictício sobre o retorno ou não da Ditadura Civil-Militar, nos moldes daquela existente nos anos de 1964-1985. 

Por conseguinte, deixando de lado o mitológico debate supracitado promovido pelo sentimento nostálgico presente numa parte da sociedade, que se apropria das redes sociais para incitar uma visão maniqueísta sobre a Ditadura Civil-Militar. Foi selecionado depoimentos verídicos sobre a forma de tratamento ofertado pelos agentes do DOI-CODIs ou DOPS aos militantes que não se sentiam confortáveis com o governo militar. O objetivo do texto é trazer a superfície do tempo presente, uma gota do oceano de torturas e assassinatos realizados pelos governos militares em comum acordo com o governo dos Estados Unidos e suas agências (CIA) através da Operação Condor. Não há uma estimativa de quantas militantes eram mães ou foram sequestradas grávidas. Mas houve militantes políticas, mães e/ou grávidas que foram sequestradas, torturadas, bem como crianças que também sofreram os efeitos perversos da repressão política.

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Entretanto, antes de citar os depoimentos é preciso passear nos trilhos da História para entender como a prática da tortura iniciou. A sevícia começou ser amplamente usada para conseguir confissões dos militantes envolvidos em ações contra o governo militar. Com o Ato Institucional nº 5 (AI-5), as mídias impressas passaram a ser mais censuradas e com a falta de divulgação da violência, as torturas se tornaram tão violentas, que o preso não desejava mais viver, transformando o suicídio num ato corriqueiro da época, que os militares se apropriaram da onda de suicídios noticiada pelos jornais para justificar os assassinatos de prisioneiros nos quartéis e presídios. Porém, o leitor pode questionar o texto dizendo: por que nenhum militar foi preso por cometer esse tipo de crime, como ocorreu no Chile? Porque em 1979, o Congresso Nacional aprovou a Lei de Anistia, e assim os envolvidos em crimes políticos seriam perdoados pela justiça brasileira, inclusive os torturadores. Acredita-se que a Lei de Anistia seja responsável pelo esquecimento desse período de trevas na História do Brasil, ao ponto de transformar a tortura em algo necessário para se manter a ordem na época.

Órfãs do Sistema:

Soledad Viedma Barret (1945 – 1973) foi assassinada durante o episódio conhecido como Massacre da Chácara São Bento, em Recife (PE). Suspeita-se de que estivesse grávida na ocasião de sua morte. Mas ela teve uma filha antes, Ñasaindy, que na época estava com um ano e oito meses. A filha de Soledad não conheceu a mãe ou não se lembra, por conta da pouca idade. Mais, igualmente não conheceu o pai, José Maria Ferreira de Araujo, assassinado (e desaparecido) no DOI-CODI/SP, em 23 de setembro de 1970. Vanúsia, nascida na clandestinidade, em 27 de agosto de 1969, filha de Ranúsia Alves Rodrigues (1945–1973) , guerrilheira, presa, torturada e assassinada, cujos restos mortais nunca foram entregues a seus parentes. Vanúsia foi criada por duas mulheres que moravam na comunidade da Mangueira, na cidade de Recife (PE). Somente aos 23 anos viu uma foto da mãe, publicada no Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos.

Altamente perigosos:

O caso dos meninos criados pela “tia” Tercina Dias de Oliveira, militante do movimento guerrilheiro na área do Vale da Ribeira (SP): Ernesto Carlos Nascimento (nascido em 1968), aos 2 anos de idade foi preso, em 1970, pelos agentes do DOPS, em São Paulo; Zuleide Aparecida do Nascimento (nascida em 1965) estava com 4 anos e 10 meses; Luis Carlos Max do Nascimento, irmão de Zuleide, nascido em 1963, com 6 anos e 7 meses de idade; e Samuel Dias de Oliveira tinha quase 9 anos. Todos foram banidos do Brasil sob alegação de que eram elementos perigosos e inimigos do Estado.

A tortura é para todos:

Gino Ghilardini, na época, com 8 anos de idade, filho de Luis Ghilardini (1920–1973), comunista assassinado sob torturas no DOI-CODI/RJ, foi preso juntamente com a mãe, Orandina. Ambos foram torturados. O menino Gino conta que era violentado para o pai falar o que sabia: “Eu ouvia meu pai ali perto gemendo, eu escutava, mas não podia fazer nada”. Passados uns dias, Gino foi encaminhado e ficou durante vários meses na Fundação Nacional do Menor no Rio de Janeiro.

Todos são subversivos:

Virgílio um desaparecido político, pois seus restos mortais até hoje não foram entregues a seus familiares para um sepultamento digno. Os filhos de Virgílio eram crianças e foram presos com a mãe, que não era militante, Ilda Martins da Silva. Ilda foi interrogada, torturada e separada dos filhos: “Eu não queria me separar deles de jeito nenhum, veio uma freira, pegou-os e os levou para o DOPS/SP. Eles ficaram dois dias lá e depois foram levados para o Juizado de Menores, onde permaneceram por dois meses. Isabel, a mais nova, era um bebê de 4 meses, foi hospitalizada e quase morreu. Eu fiquei presa por nove meses e estive incomunicável, não podia ver meus filhos ou saber deles. E eu não tinha participação política em nada”.

Abortos da Ditadura:

Maria José da Conceição Doyle, estudante de Medicina, em 1971, em Brasília: “(...) que a interroganda estava grávida de 2 meses e perdeu a criança na prisão, embora não tenha sido torturada, mas sofreu ameaças; (...)”. Maria Cristina Uslenghi Rizzi, 27 anos, secretária, denunciou à Justiça Militar de São Paulo: “(...) sofreu sevícias, tendo, inclusive, um aborto provocado que lhe causou grande hemorragia, (...)”. Olga D´Arc Pimentel, 22 anos, professora, em 1970, no Rio: “(...) sevícias, as quais tiveram, como resultado, um aborto provocado que lhe causou grande hemorragia, (...)”. Regina Maria Toscano Farah, estudante, 23 anos, ao depor, no Rio, declarou: “(...) que molharam o seu corpo, aplicando consequentemente choques elétricos em todo o seu corpo, inclusive na vagina; que a declarante se achava operada de fissura anal, que provocou hemorragia; que se achava grávida, semelhantes sevícias lhe provocaram aborto; (...)”. Isabel Fávero, ex-militante da VAR-Palmares, presa em 5 maio de 1970, em Nova Aurora, cuja denúncia foi feita, quarenta anos antes, pelo seu marido, Luiz Fávero11. Ela relata com detalhes o abortamento sofrido e denunciado pelo seu marido na época: “Eu ficava horas numa sala, entre perguntas e tortura física. Dia e noite. Eu estava grávida de dois meses, e eles estavam sabendo. No quinto dia, depois de muito choque, pau de arara, ameaça de estupro e insultos, eu abortei. Depois disso, me colocaram num quarto fechado, fiquei incomunicável”. Nádia Lucia do Nascimento, integrante do MR-8, presa em São Paulo, em 1974, grávida de seis meses, no DOI-CODI/SP, foi colocada na “cadeira de dragão” pelo torturador conhecido por Capitão Ubirajara (delegado da polícia civil de São Paulo, que integrava as equipes de torturadores do DOI-CODI/SP, cujo nome oficial é Aparecido Laerte Calandra). "Depois de arrancada a roupa, ela levou choque elétrico por todo o corpo, o que fez com que abortasse. Ficou durante dias com fortes hemorragias e dores, sem sequer um atendimento médico". 

A mulher sob o autoritarismo:

A submissão das mulheres se dá, em grande parte, pelo controle do corpo feminino. O melhor exemplo deste controle é a violência contra as mulheres – prática tão antiga e naturalizada que, naqueles anos de ditadura, prevalecia o ditado popular: “Em briga de marido e mulher não se mete a colher”, mesmo que as mulheres fossem espancadas, violentadas e assassinadas.  No Código Civil daquela época, o homem podia pedir a anulação do casamento se a mulher não fosse virgem e não tivesse avisado a ele com a devida antecedência e precaução. Somado a isso, havia uma campanha de controle da natalidade incentivada pelos Estados Unidos – baseada na ideologia imperialista – contra o nascimento de filhos de pobres no Brasil e em diversos países, denominados à época como países do "Terceiro Mundo". Essa postura contribuiu enormemente para a expansão das esterilizações femininas e de doenças gravíssimas de hipertensão. Os índices apresentados naquela época já eram altíssimos: em Pernambuco, 18,9% das mulheres de 15 a 44 anos se encontravam esterilizadas (trompas ligadas) enquanto 12,5% usavam pílulas; em Manaus, 33% das mulheres estavam com as trompas ligadas; 17% no Piauí; e 15% das paulistas. Estavam excluídas desses cálculos as mulheres esterilizadas por outros motivos, como abortos mal feitos ou pelo uso inadequado de pílulas ou do DIU (Folha de São Paulo, edição de 17 jul. 1983).  Dentro desse cenário de proibição, as militantes políticas se apropriaram de seus corpos e decidiram ser mães e aquelas que decidiram pelo aborto realizaram sem recursos materiais. Logo, não foram apenas militantes políticas e sim mulheres que lutaram contra a Ditadura pelo direito de decidir o que fazer com o próprio corpo.

Nascidas de estupros:

A omissão de nascimento de crianças vítimas de estupros praticados por agentes do Estado existiu, presas políticas foram violentadas nos chamados DOI-CODIs. Porém, as razões para o silêncio permanente que paira sobre o assunto são muitas: a profunda humilhação de ser uma mulher estuprada e ainda mãe de uma criança filha de um estupro cometido por torturadores, justifica a dificuldade de encontrar documentos sobre denúncias de estupro. Se a desigualdade entre os sexos é tão visível nos dias de hoje. O que dizer naqueles anos de chumbo quando "mulher" era assunto proibido e considerado “subversivo”? Logo, para corroborar a ocultação que envolvia a palavra "mulher", a revista Realidade, de janeiro de 1967, n. 10, teve sua edição especial dedicada à situação das mulheres apreendida pela censura. O jornal Movimento, n. 45, foi totalmente censurado, por realizar uma edição voltada para “O Trabalho da Mulher no Brasil”. A desqualificação era tão comum sobre a mulher, que um dos ditadores (General Figueiredo, 1978- 1985) chegou a dizer em público que: “... mulher e cavalo a gente só conhece quando monta”.

Sobre a intervenção das Forças Armadas desejada pelo coronel Mourão, sendo aplicada como coordenação as forças de segurança do estado do Rio de Janeiro como foi em Espírito Santo, não há mal nisso. Já que, a sociedade encontra-se refém da criminalidade. Entretanto, juntamente com isso, a população das favelas também são reféns de políticas públicas. Logo, junto com a política de segurança, deveria chegar também nas comunidades cariocas, as secretarias de Educação e Saúde, para que os favelados não fossem apenas enxergados através do olhar negativo e desconfiado das mídias e de quem é do asfalto, pois as drogas e as armas não são fabricadas na favela. Porém, incitar o retorno da Ditadura Civil-Militar através de uma intervenção como deseja Mourão, não é apenas um retrocesso político, social e econômico para o Brasil, é também negar a existências dos desfavorecidos e mais, é ocultar a memória das "Marias" estupradas e torturadas, das mulheres que por viverem numa sociedade misógina, não puderam denunciar seus algozes. O retrocesso da Democracia servirá apenas para apagar o sequestro, o abandono, a tortura, o aborto e o nascimento de crianças que sofreram nas entranhas da Ditadura.

(...) Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca(...)



Fonte:

GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas - A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada.

PAIVA, Rubens. Infância Roubada: crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil.

KARNAL, Leandro. Todos contra todos - o ódio nosso de cada dia.

TESCARI, Adriana Sader. Violência sexual contra a mulher em situação de conflito armado.

DIANA, Marta. Mujeres Guerrilleras: Sus Testimonios en la militancia de los setenta.

TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve História do Feminismo no Brasil.

Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos 1964-1985.

Brasil: Nunca Mais.

Revista Brasileiros, Nº 68 março de 2013 "subversivos: acredite".

_________________________________ "Estas crianças foram presas e banidas do Brasil"

Site:

www.cnv.gov.br

g1.globo.com

www.arquivonacional.gov.br

Música:

Maria, Maria - compositor Milton Nascimento e Fernando Brant.



2 comentários:

  1. Período nebuloso da história brasileira que alguns negam sua existência. Hoje vivenciamos um governo ditador, golpista, com setores do governo comandado por ministros alinados aos interesses do Planalto.Logo, vimos recentemente uma pasta de seu governo, Ministério do Trabalho editar uma medida através de decreto que retrocede o trabalho análogo ao escravo; sendo alvo de críticas de toda sociedade envolvidas nas políticas de Direitos Humanos,OAB,Sociólogos etc. Então, há muito tempo os descamizados, pobres, negros, índios e todo aquele que de alguma maneira contrarie os interesses desta elite conservadora. Nesta democracia dita por essa casta, nos resta ao povo que em 2018 mude- se este cenário perverso através do voto...

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  2. Estamos vivendo num Estado de Exceção, em que o Judiciário comprado, continua não vendo as arbitrariedades do (des)governo Temer!

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