terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Sambando a Ditadura!!!

Fazer cem anos não foi uma tarefa fácil para o Samba, a partir de 1937, a Ditadura do Estado Novo fez a união visceral entre o samba e a malandragem ser interrompida e censurada pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), passou por um processo de "branqueamento" para ser aceito pelas instituições fonográficas e fora utilizado como ferramenta do governo Vargas para doutrinar os trabalhadores brasileiros. "O amor regenera o malandro" serve de exemplo para expor a utilização do samba como ferramenta de doutrinação.


O amor regenera o malandro
Sou de opinião/ De que todo malandro/ Tem que se regenerar/ Se compenetrar(e ainda mais: breque)/ Que todo mundo deve ter/ O seu trabalho para o amor merecer/
Regenerado/ Ele pensa no amor/ Mas pra merecer carinho/ Tem que ser trabalhador(que horror!: breque)

Porém, por mais ditatorial e supostamente totalitário que seja um regime político, nunca se consegue calar por completo as dissidências e as minorias. O "breque" usado a duas vozes - breque que, neste caso, é anunciador de distanciamento crítico - no samba, colocou por terra toda politicagem do governo Vargas e expôs a quebra da aparente harmonia estabelecida na letra, subvertendo seu conteúdo original a típica malandragem que utilizava todo seu gingado e balanço para "driblar" ou "sambar" a censura e doutrinação do Estado Novo.

Para ratificar o drible a censura o cronista musical do dia-a-dia, Assis Valente se aproveita de um assunto de censo comum de 1940, e faz uma narrativa de um agente recenseador que subiu ao morro e quis saber como é a vida de um casal amigado, "perguntou se meu moreno era decente/ e se era do batente/ ou era da folia". Diante dessa interpelação, a mulher, que se declara "obediente a tudo que é da lei", foi logo se explicando:


O meu moreno é brasileiro/ É fuzileiro/ E é quem sai com a bandeira/ Do seu batalhão.../ A nossa casa não tem nada de grandeza/ Mas vivemos na pobreza/ Sem dever tostão/ Tem um pandeiro, tem cuíca e tamborim/ Um reco-reco, um cavaquinho/ E um violão

Seu "moreno" ao que tudo indica, nem de longe poderia ser catalogado no exército regular de "trabalhadores do Brasil", ele que seria talvez porta-bandeira (ou melhor, mestre-sala) de escola de samba. No barraco em que moravam, faltava tudo - imagem da pobreza que contrasta com a do "Brasil Novo de Getúlio Vargas" vomitada cotidianamente pela propaganda governamental através das ondas de rádio.

O golpe militar de 1964 que derrubou o Presidente João Goulart do poder, fez com que, vários segmentos artísticos se tornassem fortes personagens de luta contra a Ditadura. Por exemplo, o Samba mais uma vez entrou em cena para "driblar" a censura que assolava os artistas e a população brasileira. Um ano após o golpe, o compositor Zé Keti da Portela lançou o samba "Acender as velas" para protestar contra a Ditadura e para relatar o abandono do (des)governo militar para com a população das favelas:


Acender as velas
Acender as velas/ Já é profissão/ Quando não tem samba/ Tem desilusão/ 
É mais um coração/ Que deixa de bater/ Um anjo vai pro céu/ Deus me perdoe, mas vou dizer/ Deus me perdoe, mas vou dizer/ O doutor chegou tarde demais/ Porque no morro não tem automóvel pra subir/ Não tem telefone pra chamar/ E não tem beleza pra se ver/ E a gente morre sem querer morrer/ E a gente morre sem querer morrer


As Escolas de Samba do Salgueiro, Império Serrano e Unidos de Vila Isabel também protestaram contra a Ditadura Militar. Quando o Ato Institucional nº 5 (AI-5), entrou em vigor no governo do presidente militar Arthur Costa e Silva, em 1968, para tolir a liberdade da população brasileira, o Samba por ser uma expressão musical visceral, aquilo que se encontra no íntimo do povo brasileiro, fez o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) monitorar todos os sambas de enredo. A Escola Império Serrano foi obrigada pelo governo militar a modificar um verso do samba "Heróis da Liberdade" que fazia analogia à luta pela liberdade na Ditadura no ano de 1969 e por possuir uma frase considerada subversiva, reescreveram assim: "É a evolução em sua legítima razão"


"Ao longe soldados e tambores/ Alunos e professores/ Acompanhados de clarim/ Cantavam assim/ Já raiou a liberdade/ A liberdade já raiou/ Essa brisa que a juventude afaga/ Essa chama/ Que ódio não apaga pelo universo/ É a revolução em sua legítima razão" .

Os anos de chumbo (1968-1974) viu surgir na composição de Sérgio Sampaio, "Eu quero botar meu bloco na rua" de 1973, um dos grandes hinos contra a censura e a perseguição do governo Médici, marcado pelo falso "milagre econômico" e pelo chamado "desbunde" da classe média. O cantor e compositor relatou a Zeca Baleiro, em 1989 que, "A grande importância dessa canção é ter sido feita e lançada numa época em que as pessoas estavam muito amordaçadas e bastante medrosas de abrirem a boca para falar qualquer coisa". O verso "(há quem diga) que eu morri de medo quando pau quebrou"  sintetiza de forma clara o sentimento da população brasileira. 

Eu quero botar meu bloco na rua
Há quem diga que eu dormi de touca/ Que eu perdi a boca, que eu fugi da briga/ Que eu caí do galho e que não vi saída/ Que eu morri de medo quando o pau quebrou/ Há quem diga que eu não sei de nada/ Que eu não sou de nada e não peço desculpas/  Que eu não tenho culpa, mas que eu dei bobeira/ E que Durango Kid quase me pegou/ Eu quero é botar meu bloco na rua/ Brincar, botar pra gemer/ Eu quero é botar meu bloco na rua/ Gingar, pra dar e vender/ Eu, por mim, queria isso e aquilo/ Um quilo mais daquilo, um grilo menos disso/ É disso que eu preciso ou não é nada disso/ Eu quero é todo mundo nesse carnaval/ Eu quero é botar meu bloco na rua/ Brincar, botar pra gemer/ Eu quero é botar meu bloco na rua/ Gingar, pra dar e vender

O governo de João Batista Figueiredo, último presidente militar, foi marcado por uma enorme crise econômica, por atentados terroristas realizados pelos militares contra as manifestações públicas descontentes com 21 anos de Ditadura e por um processo lento e gradual de abertura política. A Escola de Samba União da Ilha do Governador em 1978, aproveitou o momento para lançar o Samba Enredo "O Amanhã" e "driblar" a censura com um sentimento de esperança e um futuro melhor. 


O Amanhã
A cigana leu o meu destino/ Eu sonhei/ Bola de cristal, jogo de búzios, cartomante/ Eu sempre perguntei/ O que será o amanhã?/ Como vai ser o meu destino?/ Já desfolhei o mal-me-quer/ Primeiro amor de um menino/ E vai chegando o amanhecer/ Leio a mensagem zodiacal/ E o realejo diz/ Que eu serei feliz/ Como será o amanhã/ Responda quem puder (bis)/ O que irá me acontecer/ O meu destino será como Deus quiser

A Lei de Anistia perdoava todos os acusados de praticar tortura, devolvia os direitos políticos dos exilados e aboliu o sistema político bipartidário (ARENA - transformou-se no PDS; MDB - se tornou o PMDB). A criação de diversos partidos políticos fez o ano de 1982 ficar marcado pelas mudanças políticas, já que, ocorreram eleições diretas para os governos estaduais e demais cargos legislativos. Mediante esse novo quadro político membros da oposição da Câmara dos Deputados tentaram articular um projeto de lei que instituísse o "voto direto" na escolha de um sucessor do presidente João Batista Figueiredo, que anos depois ficou conhecida como a "Emenda Dante de Oliveira". Driblando a censura, nesse mesmo ano, os compositores Didi e Mestrinho criaram o samba "É Hoje". Este samba é um dos mais tocado no carnaval até os dias atuais. E foi estrelado pela Escola de Samba União da Ilha do Governador no carnaval de 1982 exaltando a alegria da possível chegada das "Diretas Já".

É Hoje
A minha alegria atravessou o mar/ E ancorou na passarela/ Fez um desembarque fascinante/ No maior show da Terra/ Será que eu serei o dono desta festa um rei/ No meio de uma gente tão modesta/ Eu vim descendo a serra/ Cheio de euforia para desfilar/ O mundo inteiro espera/ Hoje é dia do riso chorar/ Levei o meu samba/ Pra mãe-de-santo rezar/ Contra o mau olhado/ Carrego o meu Patuá/ Acredito ser o mais valente/ Nesta luta do rochedo com o mar(E com o mar)/ É hoje o dia da alegria e a tristeza/ Nem pode pensar em chegar/ Diga espelho meu/ Se há na avenida/ Alguém mais feliz que eu

Fazer a analogia de um samba ao período abordado como o Estado Novo e a Ditadura Militar, exclusivamente através de sua letra, resulta no rebaixamento da canção, a um simples documento escrito, amesquinhando seu campo de significações. Logo, é preciso ouvir infinitas vezes sua sonoridade para alcançar a  verdadeira interpretação exposta pelo compositor.

A arte musical criada pelos negros com muita genialidade e resistência enfrentou diversos conflitos com instituições fonográficas, políticas e militares para que hoje pudesse expressar suas tradições. A miscigenação de diferentes instrumentos e ritmos fez surgir uma melodia repleta de sangue, muita porrada e suor que, no ano de 2016, tornou-se centenária. Esta musicalidade, ou melhor, esta arte fonográfica, é o Samba, que de cadência em cadência foi sambando(driblando) a Ditadura.

























  • Os personagens da imagem acima retratam Getúlio e o Estado Novo, o Militar e a Ditadura de 1964-1985 e o jogador de futebol representa o malandro do "Samba" driblando os dois regimes ditatoriais para chegar ao centenário e disseminar suas manifestações musicais até hoje. 
  • As luvas com a marca norte-americana expõe a entrada do capital estrangeiro no governo Vargas(1930-1945) e na Ditadura Militar(1964-1985).
  • Os Arqueiros de futebol quando falham, interferem nos resultados de seus times com as derrotas. O goleiro Getúlio representa as falhas políticas, sociais e econômicas do Brasil estado-novista; e o guardião Militar é responsável por 21 anos de repressão política, pelo falso milagre econômico, pelas crises econômicas e suas mazelas que assolam a população brasileira até os dias atuais.



Fontes:

A partitura de “O amor regenera o malandro” contou com edição de A Melodia, Rio de Janeiro, s/d. Mesmo a um autor preocupado com a audição da canção e a apreciação de seus elementos musicais, isso passou despercebido a ponto de ele agrupar a gravação desse samba entre os que engrossavam a corrente estado-novista. V. FURTADO FILHO, João Ernani. Um Brasil brasileiro: música, política, brasilidade, 1930-1945. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo –, São Paulo, 2004, p. 239. 20 Cf. 

NETO, Lira. Uma História do Samba: as origens.

V. PARANHOS, Adalberto. O Brasil dá samba?: os sambistas e a invenção do samba como “coisa nossa”. In: TORRES, Rodrigo (ed.). Música popular en América Latina. Santiago de Chile: Fondart, 1999.

 Cf. VASCONCELLOS, Gilberto e SUZUKI JR., Matinas. A malandragem e a formação da música popular brasileira. In: FAUSTO, Boris (dir.). História geral da civilização brasileira - III - O Brasil republicano (Economia e cultura – 1930/1964). São Paulo: Difel, 1984, p. 520. 

“Recenseamento” (Assis Valente), Carmen Miranda. 78 rpm, Odeon, g.: 27 set. 1940, l.: dez. 1940, r.: caixa de discos Carmen Miranda, Emi, CD n. 5, 1996. 22 Ou “nós vivemos na fartura”, como canta Ademilde Fonseca, para acentuar o efeito de ironia contido em “Recenseamento”, no LP À la Miranda, Odeon, 1958, r.: fascículo/LP Assis Valente. História da Música Popular Brasileira, São Paulo, Abril Cultural, 1982.

Revista Umdegrau, 1989. (autor: Zeca Baleiro)

Ginzburg é um severo crítico do excessivo apego dos historiadores às fontes escritas como documento, com todas as suas implicações metodológicas. V. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 17 e 18.

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