quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

O mau governo senhorial e o órgão de intervenção da Corte! (A escravidão nas urbes brasileiras no século XIX)

Ao longo do século XIX, a população escrava do Rio de Janeiro teve um crescimento astronômico, foi possível concluir isto através do número de cativos que viviam no meio urbano em 1849, era de 78.855 escravos, correspondendo a 40% da população; deste número 60% eram africanos. E para manter a ordem pública em uma "cidade negra", a Polícia da Corte precisou entrar em cena para interferir na relação senhor-escravo, e ao mesmo tempo em que a polícia limitava a autonomia escrava, limitava também o poder senhorial; porém devido aos "termos de bem viver", que foram produzidos pela Intendência Geral de Polícia da Corte, foi possível observar uma série de determinação da polícia a fim de orientar ou "repreender" as condutas que aludiram as relações cotidianas entre senhores e escravos. A interferência do Estado e de terceiros podia acontecer com os cativos que se enfureciam contra os seus proprietários, mas também com seus senhores ou com quem os alugavam, devido ao excesso de castigos; ou seja, quando o castigo extrapolava, no entendimento do escravo, estes, nem sempre, mas por intermédio do Estado, pelo menos no Rio de Janeiro, conseguiram ter alguns meios de fazerem seus senhores pagarem por seus maus tratos, ou alguém fazia por eles(terceiros), devido aos "termos de bem viver".

Analisando essa nova possibilidade de intromissão, a crioula Valeriana fez valer suas denuncias requerendo que a polícia interviesse nos castigos que o seu senhor, José da Costa, a fazia sofrer, logo, seu dono fora duramente repreendido pelo poderoso chefe da Intendência de Polícia da Corte, Paulo Fernandes Viana que o ameaçou de prisão. Por conseguinte a escrava Rosa Benguela, deve ter usado o mesmo recurso contra a sua senhora, percebendo essa ponte que oferecia o limite das sevícias(castigos), a cativa foi a Intendência e "requereu" a intervenção do Estado,


"Aos oito dias do mês de junho de mil oitocentos e vinte e um anos, na secretaria da Intendência Geral da Polícia da Cidade do Rio de Janeiro e Reino do Brasil, compareceu, e de ordem do Conselheiro (...) Teresa dos Passos de Jesus, e pelo dito Conselheiro lhe foi determinado que assinasse Termo de não seviciar(castigar) a sua escrava Rosa de Nação Benguela, com a pena de que obrando o contrário será corrigida por esta Intendência. O que tendo ela ouvido assim o prometeu cumprir, e assinou (...)"

Mas quando os escravos não procuravam diretamente a polícia, existia outro modo de alguém interceder por eles, ou seja, a comunidade sancionava o domínio senhorial com base em sevícias(castigos), como aconteceu com os escravos de José Soares de Moraes, segundo Roberto Guedes Ferreira,

Termo que assina José Soares de Moraes.
"Aos dezenove dias do mês de agosto de mil oitocentos e nove anos, na Secretaria da Intendência Geral da Polícia, aparaceu José Soares de Moraes e pelo Conselheiro Intendente Paulo Fernandes Viana foi determinado que devia abster-se de fazer ao seu escravo Joaquim Cassange o procedimento que acabou de praticar por cuja razão foi mandado para o depósito da (ilegível), evitando assim sevícias. Pena de que obrando o contrário ser preso e degradado para fora ao arbítrio desta Intendência e assinou. Eu, Nicolau Veigas de Proença, oficial maior da Secretaria da Intendência, o escrevi e assinei"

Porém, não fica claro quem recorria à polícia, isto é, se eram os cativos, a própria polícia ou terceiros, mas é bem provável que José Moraes foi visto por alguém cometendo sevícias(castigos) em seu escravo, porque logo após os maus tratos, teve de comparecer na Secretaria da Intendência Geral da Polícia, como analisa Roberto Guedes Ferreira. Segundo o autor não eram só castigos excessivos que levavam os senhores a serem repreendidos pela polícia. Havia outro tipo de intervenção no convívio senhor-escravo, o de coagir os proprietários à não romper os laços matrimoniais dos escravos. O vínculo conjugal dos escravo Felisberto com sua esposa sofreu embaraços pelos seus senhores, devido à vontade do seu senhor em vender o cativo. Mas antes de adentrar no caso de Felisberto, devemos nos atentar que a legislação eclesiástica requeria a seguinte lei,

"Os escravos e escravas podem se casar com outras pessoas cativas, ou livres, e seus senhores lhes não podem impedir o Matrimônio, nem o uso dele em tempo e lugar conveniente, nem por este respeito os podem tratar pior, nem vender para outros lugares remotos, para onde  o outro por ser cativo, ou por ter outro justo impedimento, o não possam seguir(...) nem depois de casados os vendam para partes remotas"

Por outro lado a lei não era cumprida na prática pelos senhores, gerando complicações em casamentos de cativos que residiam em casas distintas, como o caso do Felisberto que, segundo o documento, em 17 de novembro de 1808, foi determinado a Antonio José Teixeira Penna seu senhor,

"foi determinado que não devia vender seu escravo Felisberto, pardo, para fora da terra onde o vender, a pessoa que ou compre sua mulher, ou deixe viver com ela, por isso que com escravos casados nada faz assim o desquite, sob pena de que obrando o contrário fica desde logo nula a venda por ordem especial que oralmente deu Sua Alteza Real, o que ouvindo assim o prometeu cumprir é determinado e assinou(...)" 

E mais uma vez, o Estado que, enxergava os cativos como (nosso) em determinados casos, e os terceiros como (seus), se empenharam em proteger os escravos, conter as sevícias dos senhores e manter os laços familiares conseguidos através do casamento, mas para efetivar esses atos, foi preciso intervir na relação do senhor que enxergava seu cativo como (meu). Assim, a Polícia da Corte surge como um órgão mediador entre o senhor-escravo, visando manter a ordem em uma "cidade negra", com isso, o Intendente Paulo Fernandes Viana e o rei, conseguiam evitar que as "pequenas faíscas" se tornassem grandes levantes na cidade do Rio de Janeiro. Por conseguinte o governo dos cativos assumiu dimensões mais amplas, onde muitos senhores para manter os escravos no cativeiro, tiveram que negociar a melhor forma para explorar a mão de obra, devido à dependência econômica direta com seus cativos.


“Todo camburão tem um pouco de navio negreiro (...)
quem segurava com força
a chibata agora usa farda (...)”
O Rappa, Todo camburão tem um pouco de navio negreiro.

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FERREIRA, Roberto Guedes. Autonomia escrava e (des)governo senhorial na cidade do Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX.

FLORENTINO, Manolo. (org) Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, século XVII-XIX).

VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Coimbra: Real Colégio das Artes e da Companhia de Jesus, 1720, livro Primeiro, Título LXXI. 


RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil.